“Antes da PrEP, eu achava que a camisinha era a única forma de prevenção ao HIV”. “Eu queria uma prevenção combinada e a PrEP trouxe mais segurança à minha vida sexual”. As declarações são de dois adolescentes acompanhados pelo PrEpara Salvador, sítio baiano do estudo multicêntrico PrEP1519, projeto idealizado e executado por professores e pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em parceria com a Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Os depoimentos foram compartilhados durante uma capacitação especial promovida pela equipe local do projeto, realizada entre os dias 8 e 11 de novembro. No total, 81 profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS), de 11 municípios baianos, incluindo Salvador, participaram do “Curso de práticas de cuidado em prevenção combinada com foco na profilaxia pré-exposição (PrEP) à infecção pelo HIV”. O público-alvo foi composto especialmente por médicos e enfermeiras generalistas, além de gestores de serviços de diversas áreas, como farmacêuticos, psicólogos e assistentes sociais. Os profissionais conheceram de perto as estratégias do projeto para repassar o conhecimento adquirido aos diversos serviços de saúde da capital e do interior.
O PrEP1519 é o primeiro estudo de coorte da América Latina de demonstração da efetividade da PrEP na prevenção do HIV entre adolescentes gays, homens que fazem sexo com homens (HSH), travestis e mulheres transexuais de 15 a 19 anos. Atualmente, são 1.154 participantes distribuídos nos três municípios em que o projeto é realizado: Salvador, Belo Horizonte e São Paulo. Dentre os 1088 adolescentes que fazem uso de PrEP ao longo da coorte até novembro de 2021, a maioria se declara HSH (91,9%), com idade entre 18 e 19 anos (80,8%), 12 anos de escolaridade ou mais (51,5%), cor de pele autodeclarada como preta e parda (69,7%), e morando com os pais ou familiares (80,6%).
Na capital baiana, o projeto ganhou o nome de PrEPara Salvador e funciona no Casarão da Diversidade, localizado no Pelourinho, Centro Histórico da cidade. O estudo é financiado pela Unitaid, organização internacional que investe em inovações para prevenir, diagnosticar e tratar HIV/aids, além de outras ações de saúde.
Estratégias e desafios
A mesa de abertura do curso contou com a participação de Inês Dourado, professora do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA) e coordenadora local do PrEP1519, e Laio Magno, professor da Uneb e vice-coordenador do projeto. Durante a apresentação, eles compartilharam relatos de participantes do estudo, e discutiram estratégias e desafios para o recrutamento, adesão e vinculação de adolescentes para o uso da PrEP, bem como as novas tecnologias que serão testadas no futuro, a exemplo da PrEP sob demanda e injetável de longa duração.
“A expansão da PrEP requer mobilização da comunidade e estratégias inovadoras para criar demandas, atrair e recrutar. A sociedade e os jovens precisam saber que a PrEP existe e fazer as suas escolhas a partir das práticas sexuais e das suas concepções de risco”, destacou Inês Dourado na palestra de abertura.
Os participantes do curso também foram apresentados às principais ferramentas de comunicação adotadas para alcançar as populações-chave para o HIV. Destaque para Amanda Selfie, a “primeira robô transexual da América Latina”, inteligência artificial criada pelo projeto para interagir com os jovens e esclarecer dúvidas gerais sobre sexo, orientação sexual, identidade de gênero, prevenção de HIV/IST e PrEP. Atualmente, a ferramenta funciona por meio de um chatbot no Facebook. “Em breve, Amada Selfie também estará presente no Whatsapp”, anunciou a coordenadora.
Sobre as barreiras para adesão à PrEP no país, Inês Dourado chamou atenção para a onda de conservadorismo e a redução da oferta de educação em saúde sexual nas escolas. “Além disso, existe o estigma e discriminação relacionados à orientação sexual e identidade de gênero da população LGBTQIA+, pouco apoio familiar, discriminação e violência nas escolas, diversos obstáculos para acesso aos serviços de saúde, e o próprio estigma relacionado ao uso da PrEP por associação com o HIV”, pontuou.
Laio Magno apresentou dados epidemiológicos que mostram o aumento expressivo de novos casos de aids entre adolescentes e jovens no Brasil. “As principais palavras para melhoria deste quadro começam com a letra ‘A’: Acesso (aos serviços e tecnologias antigas e novas de prevenção), Acolhimento (livre de discriminação e estigma, e culturalmente adequado) e Adesão (aos tratamentos, profilaxias e insumos de prevenção e testagem regular)”, destacou.
Dividida em duas turmas presenciais, a primeira etapa da capacitação seguiu todos os cuidados sanitários necessários em relação à pandemia da Covid-19. O curso contou ainda com rodas de conversa sobre testagem de HIV, profilaxia pós-exposição ao HIV (PEP), manejo clínico, gestão de serviços de saúde de prevenção às IST e uma simulação clínica sobre as práticas de cuidado com a PrEP. As atividades foram conduzidas pela equipe multiprofissional do projeto.
“Na fase seguinte da capacitação, os participantes farão uma visita técnica ao PrEPara Salvador, bem como terão acesso a plataforma EAD, com fóruns de discussões, curadoria nacional e internacional atualizada e uma mentoria especial com a equipe do projeto”, explica Carolina Pedroza, professora de Enfermagem da Uneb e coordenadora pedagógica do PrEPara Salvador. Ao final do curso, os profissionais de saúde e gestores municipais também devem elaborar um plano de ação para a implementação da PrEP em seus serviços.
O objetivo da capacitação é não só ampliar o acesso à PrEP nos outros municípios, mas também garantir que os profissionais estejam capacitados para prestar esse tipo de atendimento. “Isso vai aumentar o número de profissionais atendendo PrEP e, consequentemente, ampliar o acesso à população sobre essa forma de prevenção da infecção ao HIV”, destaca a coordenadora pedagógica.
Novo protocolo de PrEP
A PrEP é a utilização de medicamento antirretroviral por pessoas não infectadas pelo HIV, mas em situação de alto risco de infecção. Segundo as evidências científicas, esse tipo de estratégia, se usada corretamente, pode reduzir o risco da transmissão do vírus HIV em mais de 90%.
Para garantir a prevenção, é preciso tomar um comprimido composto por dois antirretrovirais (tenofovir e emtricitabina) diariamente. Essa associação de medicamentos, aprovada nos Estados Unidos em 2004, já era utilizada no tratamento do vírus HIV para indivíduos infectados. Em 2012, a Food and Drug Administration (FDA), agência de regulação do governo norte-americano, anunciou a aprovação também como pílula preventiva para pessoas não infectadas, ou seja, como profilaxia pré-exposição ao HIV (PrEP).
No Brasil, o serviço é oferecido gratuitamente para pessoas maiores de 18 anos nos serviços do Sistema Único de Saúde (PrEP-SUS). Além disso, é preciso pertencer aos seguintes segmentos populacionais: gays, homens que fazem sexo com homens (HSH), pessoas trans, profissionais do sexo e parcerias sorodiferentes para o HIV (quando uma das pessoas é infectada pelo HIV e a outra não). É também obrigatório que o interessado atenda a alguns critérios de elegibilidade, como relação sexual sem uso de preservativo nos últimos seis meses, e/ou episódios recorrentes de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), dentre outros requisitos. As normas estabelecidas integram o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Profilaxia Pré-Exposição de Risco à Infecção pelo HIV, publicado pelo Ministério da Saúde em 2018.
A expectativa dos pesquisadores é que seja publicado, já nos próximos meses, um novo protocolo pelo Ministério da Saúde, reduzindo a faixa etária do PrEP-SUS para 15 anos. A mudança é também inspirada nos resultados satisfatórios que o projeto PrEP1519 vem alcançando com os adolescentes das populações-chave desde 2018. “O nosso trabalho está fundamentando e fornecendo elementos para a ampliação da PrEP para esses adolescentes”, comemora a coordenadora Inês Dourado.
Entre as novas atualizações do protocolo, também está prevista a autorização para prescrição da PrEP por enfermeiros.
Agentes multiplicadores
O assistente social Edilson Dias veio de Porto Seguro para participar da capacitação promovida pelo PrEPara Salvador. Para ele, a troca de experiências com a equipe do projeto será fundamental para ajudar na implementação da PrEP no município, prevista para acontecer nos próximos meses. “Como é um serviço que ainda não existe em Porto Seguro, temos muita expectativa e planos para implementá-lo o mais rápido possível”.
Atualmente, o município oferece apenas a PEP, Profilaxia Pós-Exposição, caracterizada pelo uso de medicamentos antirretrovirais após um contato com potencial exposição ao vírus HIV. Com a aprovação do novo protocolo pelo Ministério da Saúde, a previsão é que Porto Seguro passe a oferecer a PrEP em breve, já incluindo os adolescentes a partir de 15 anos. “Os jovens estão cada vez mais curiosos sobre esse tipo de serviço. Acredito que, juntando a experiência do projeto com a nossa, vamos conseguir atingir um público bastante amplo”, avalia.
Com 24 anos dedicados à promoção da saúde no município de Salvador, a bióloga e sanitarista Sulamita Aleluia conhece bem os desafios da luta contra o HIV na capital baiana, especialmente entre os jovens e os grupos mais vulneráveis. Ela é gerente do Serviço de Atendimento Especializado Marymar Novais, localizado no Dendezeiros, única unidade da rede municipal a oferecer a PrEP para aqueles com 18 anos ou mais.
Implantado em 2020, o serviço deve ser ampliado agora para jovens a partir de 15 anos, assim que o Ministério da Saúde aprovar o novo protocolo. “Essa troca com o PrEPara Salvador é importante para que a gente possa melhorar, cada vez mais, nosso serviço, ainda em construção. Estamos bebendo em uma fonte que está fazendo sucesso”, destaca.
Segundo Sulamita, a maior parte dos jovens e adultos que procuram pela PrEP na unidade do Dendezeiros é formada por pessoas com maior nível de escolaridade e com mais possibilidade de acesso a métodos diversos de prevenção. Para ela, o grande desafio ainda é alcançar a população mais carente. “A gente precisa democratizar mais esse acesso e atingir o público mais vulnerável e que mais precisa”, conclui.