A superlotação e as desigualdades de acesso às tecnologias biomédicas, a exemplo do exame de ultrassonografia, são alguns dos principais problemas enfrentados pelos hospitais-maternidade no Brasil. A situação pode ser ainda mais crítica quando o serviço é prestado às mulheres que realizaram abortos espontâneos e provocados. É o que sugere a pesquisa “Tecnologias biomédicas e aborto em uma maternidade pública de Salvador: estudo etnográfico”, desenvolvida por Mariana Pitta Lima, egressa do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva do ISC/UFBA. A pesquisa é a vencedora do Prêmio Capes de Tese 2023 na área da Saúde Coletiva.
“A tese é resultado de um trabalho que teve início no meu mestrado e que continuou a ser desenvolvido e aprofundado durante o doutorado, ambos no MUSA – Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Gênero e Saúde do ISC/UFBA. Considero especialmente importante que seja uma tese de Saúde Coletiva, da área de concentração em Ciências Humanas e Sociais em Saúde, que trata de temáticas muito relevantes entre os estudos de gênero e saúde, como o aborto e a atenção ao abortamento”, destaca a pesquisadora Mariana Pitta Lima.
O trabalho foi defendido pela pesquisadora em junho do ano passado, sob orientação da professora Cecilia McCallum e co-orientação da professora Greice Menezes. A pesquisa buscou avaliar a trajetória reprodutiva de mulheres que receberam atendimento em uma das maternidades de maior incidência de abortos em Salvador. O objetivo era investigar o acesso a tecnologias biomédicas em situações de aborto, com um foco especial no exame de ultrassonografia.
“Os usos de tecnologias são analisados de forma situada, ou seja, contextualiza essas práticas em uma sociedade com profundas desigualdades estruturais de raça, gênero e classe mais amplas, o que se reflete em diferentes acessos a distintas tecnologias relacionadas à reprodução e ao aborto, a exemplo dos exames de imagem”, explica a pesquisadora.
O método de pesquisa adotado pelo trabalho foi a etnografia, que envolve observação participante e entrevistas com diferentes interlocutores, entre mulheres atendidas e profissionais de saúde, como médicos, enfermeiros, obstetras e ultrassonografistas.
“A maioria das mulheres baianas que procurou a maternidade pública depois de um aborto (provocado ou espontâneo) não fez nenhum exame de imagem nem para confirmar a gravidez, nem antes de chegar à maternidade. Uma pequena parte das mulheres que tiveram aborto espontâneo, por outro lado, fez o exame”, explica a pesquisadora.
De modo geral, as mulheres atendidas na maternidade selecionada para o estudo eram, sobretudo, jovens e negras, seguindo o padrão de usuárias de maternidades públicas em situação de aborto apontado por pesquisas anteriores em Salvador. A identificação da maternidade é preservada na pesquisa por questões éticas.
“Na cidade, os hospitais-maternidade, que também recebem mulheres para ter filhos, passam por uma crise persistente, que é caracterizada pela superlotação, resultante de complexas relações entre setores públicos e privados e subfinanciamento do SUS”, destaca a pesquisadora.
Segundo Mariana Pitta Lima, o trabalho faz referência e aprofunda um argumento já desenvolvido por Cecilia Donnangelo e Luiz Pereira, no clássico trabalho “Saúde e Sociedade”. O estudo é amplamente reconhecido como um dos pioneiros do pensamento social em saúde no Brasil, ao ressaltar que as tecnologias instauram relações sociais. “Nesse sentido, a análise da tese mobiliza uma literatura da Saúde Coletiva em combinação com a Antropologia da Reprodução e os Estudos Sociais em Ciência e Tecnologia”, observa.
Os frutos da pesquisa
A tese venceu a categoria de Saúde Coletiva e concorre agora ao Grande Prêmio Capes de Tese, que será outorgado para o melhor trabalho selecionado entre os vencedores da premiação em três grandes áreas (Humanidades, Ciências da Vida e Ciências Exatas, Tecnológicas e Multidisciplinar). Com 1.469 trabalhos, a edição de 2023 do Prêmio Capes de Tese recebeu o maior número de inscritos nos 19 anos de concurso.
A professora Cecilia McCallum, orientadora da Mariana Pitta Lima, destaca a complexidade do tema abordado pela pesquisa diante dos debates em torno dos direitos ao aborto e sua criminalização no país. “A atenção ao aborto é feita nas maternidades, que são instituições dedicadas ao parto. Nesse sentido, existe uma tendência em colocar numa mesma categoria estigmatizada tanto o aborto voluntário como o aborto espontâneo”, observa a professora.
Para ela, a conquista do prêmio no momento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) discute a possível descriminalização do aborto joga luz sobre a urgência de ampliar o debate sobre o assunto, além de fomentar propostas de políticas públicas que resultem em melhorias à saúde das mulheres. “Uma tese de doutorado tão bem construída, que levou tantos anos para produzir esses resultados, deixa clara a necessidade de mudanças no sistema, para que as mulheres brasileiras tenham esperança de deixarem de ser tão criminalizadas”, pontua Cecilia McCallum.
A co-orientadora da tese, professora Greice Menezes, também reforça o mérito da pesquisa num contexto de criminalização e de forte estigma social que o Brasil atravessa. “É um tema com impactos sobre a vida das mulheres, sobre o cuidado adequado e seguro que elas (não) recebem nos serviços de saúde e também sobre a pesquisa. Produzir conhecimento sobre isso é fundamental para qualificar o debate social sobre o aborto, que no Brasil ainda é realizado de modo empobrecido, privilegiando aspectos morais e religiosos”, observa Greice Menezes.
A professora também chama atenção para a originalidade que o estudo traz em relação à investigação do aborto no Brasil e o seu caráter inovador a partir da perspectiva dos Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias. “Esse trabalho também honra a tradição da Saúde Coletiva, ao buscar articular campos de conhecimento para dar conta da complexidade do objeto investigado, apontando as desigualdades presentes na oferta do cuidado às mulheres e indicando subsídios para as políticas públicas de saúde”, avalia
Para Mariana Pitta Lima, o reconhecimento do seu trabalho é especialmente importante por representar o Instituto de Saúde Coletiva, a Universidade Federal da Bahia e por dar visibilidade a um tema que merece aprofundamento em novas pesquisas. Ela também destaca o conhecimento adquirido durante a realização do doutorado sanduíche na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais, na França, sob orientação da professora Sezin Topçu, para o amadurecimento e êxito da pesquisa.
“É um tema que merece destaque diante da gravidade do problema em termos de saúde pública, e suas consequências para a saúde das mulheres e pessoas que gestam. Na tese, construímos um argumento que situa esse problema em um contexto mais amplo de desigualdades estruturais de raça e gênero, iniquidades em saúde, práticas e acesso às tecnologias”, afirma a pesquisadora.
Os próximos passos de Mariana Pitta Lima já estão bem traçados. Além de trabalhar nos artigos da tese para publicação, a pesquisadora iniciou neste mês um pós-doutorado no Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz), onde pretende desenvolver pesquisas com foco na relação entre dados e sociedade. “Durante meu pós-doutorado, pretendo prosseguir com estudos sobre as perspectivas socioantropológicas das tecnologias e saúde coletiva, com ênfase no Brasil e na América Latina. Além disso, planejo continuar explorando o tema do aborto como uma extensão do meu trabalho de tese”, conclui a pesquisadora.
Este é o segundo ano consecutivo que uma tese do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA) conquista o prêmio da Capes. Em 2022, a egressa Flávia Jôse Oliveira Alves e seus orientadores Maurício Barreto e Dandara Ramos ganharam o prêmio na mesma categoria com a tese “Avaliação do efeito de intervenções de proteção social e de saúde na mortalidade materna entre as mulheres de baixa renda do Brasil”.