As mulheres indígenas enfrentam maiores barreiras no acesso à assistência médica hospitalar durante o pré-natal, parto e no período pós-natal. Entre os desafios, estão a falta de diálogo adequado com os profissionais de saúde, desconfianças no atendimento e até mesmo episódios de racismo. Os relatos fazem parte de um estudo conduzido pelo Grupo de Pesquisa RepGen – Gênero, Reprodução e Justiça, que reúne pesquisadoras do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), do Instituto Fernandes Figueira (IFF) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Escola de Enfermagem Ana Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Os resultados do estudo “Cesarianas no Brasil em Perspectiva Interseccional” foram apresentados pelas professoras Cecilia McCallum e Ana Paula dos Reis, pesquisadoras do Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Gênero e Saúde (MUSA) do ISC/UFBA, durante o simpósio “Reenquadrando os nascimentos por cesariana: desafios, transições e políticas”, realizado nos dias 5 e 6 de setembro, em Lausanne, na Suíça. O evento reuniu pesquisadores de países como Chile, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Bangladesh, China, França, México, Peru e África do Sul, com o objetivo de discutir o uso excessivo da cesariana a partir de diversas perspectivas — médicas, políticas, econômicas e sociais.
A pesquisa desenvolvida no âmbito do Grupo de Pesquisa RepGen é um componente qualitativo do estudo “Nascer no Brasil II”, coordenado nacionalmente pela pesquisadora Maria do Carmo Leal (Fiocruz), e que envolveu mais de 22 mil mulheres internadas para o parto ou por complicações decorrentes de abortos em 465 maternidades pelo país. Entre as participantes, 176 se autodeclararam indígenas, e 16 delas concederam entrevistas para a pesquisa após o atendimento.
O estudo encontrou evidências claras de dificuldades no acesso ao atendimento e também apontou a má qualidade do atendimento pré-natal e pós-parto oferecido a essa população mais vulnerável. Em todos os casos de cesárea relatados, os procedimentos pareciam justificados, com as mulheres descrevendo complicações graves, como pré-eclâmpsia e diabetes gestacional. No entanto, algumas só souberam dessas condições na maternidade por meio de questionamentos persistentes da equipe médica e, geralmente, apenas durante ou após a cirurgia.
De acordo com as pesquisadoras, um dos achados mais evidentes foi a falta ou baixa qualidade da comunicação entre os profissionais de saúde e as mulheres indígenas. Outro aspecto que emergiu de forma alarmante foi a ocorrência generalizada de maus-tratos, com relatos de violência institucional e obstétrica, tanto em episódios recentes quanto em experiências anteriores.
Segundo o estudo, apesar de o sistema público de saúde ter a obrigação de reconhecer, respeitar e atender às particularidades culturais das populações indígenas, isso não acontece na prática. Embora o SUS ofereça serviços gratuitos, o atendimento fornecido às mulheres indígenas é frequentemente de baixa qualidade e não identifica ou atende a quaisquer necessidades culturalmente prescritas. “Os serviços desta maternidade oferecem a mesma qualidade ruim para todas as mulheres, e nós, mulheres indígenas, não recebemos tratamento especial”, destacou uma das entrevistadas que teve a identidade preservada.
Os resultados mostraram que as mulheres indígenas de língua portuguesa normalmente não se autoidentificam como indígenas. No entanto, onde a diferença é ostensiva, o racismo pode resultar. Uma das indígenas entrevistadas relatou ter testemunhado profissionais de saúde agindo com desrespeito e direcionando comentários racistas contra uma jovem mulher Yanomami que não falava português. As participantes do estudo relataram que os hospitais também não reconhecem especificidades culturais, como a escolha da posição de parto ou dieta pós-parto.
De forma geral, os resultados revelam a invisibilidade das mulheres indígenas no sistema hospitalar brasileiro, que recebem cuidados que desconsideram suas particularidades e, portanto, aumentam a vulnerabilidade. O estudo constatou a ausência de um programa de atendimento diferenciado nos hospitais e conclui que, da forma como está, a assistência à maternidade para mulheres indígenas reforça uma lógica de exclusão.
Esse contexto de vulnerabilidade enfrentado pelas mulheres indígenas no Brasil é reforçado por um estudo recente, publicado no Jornal Internacional de Ginecologia e Obstetrícia, que aponta uma mortalidade materna 2,4 vezes maior entre mulheres indígenas em comparação à população não indígena. Entre 2015 e 2021, a taxa de mortalidade materna para essas mulheres permaneceu significativamente alta, com cerca de 115 mortes por 100.000 nascidos vivos.
Os dados na literatura científica também indicam que, mesmo com o crescimento das hospitalizações de partos indígenas e a elevação da taxa de cesáreas de 20% em 2006 para 26% em 2015, os resultados em saúde materna não melhoraram de forma expressiva. Esses indicadores evidenciam, portanto, a necessidade de uma abordagem mais abrangente, que considere não apenas o acesso, mas também a qualidade do atendimento prestado às mulheres indígenas.
Sobre o evento
O simpósio “Reenquadrando os nascimentos por cesariana: desafios, transições e políticas” foi realizado nos dias 5 e 6 de setembro de 2024, em Lausanne, na Suíça, com a proposta de discutir o aumento contínuo das taxas de cesariana, mesmo com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que esse tipo de parto seja limitado a entre 10% e 15% dos nascimentos.
O encontro abordou o uso excessivo da cesariana por diversas óticas — médica, política, econômica e social —, destacando os efeitos desse procedimento tanto para as mães quanto para os bebês. Também foram discutidas as pressões médicas e legais que contribuem para o aumento das cesáreas, além dos protocolos hospitalares que incentivam práticas intervencionistas.
Durante o evento, questões relacionadas à escolha do tipo de parto foram debatidas a partir de uma perspectiva interseccional, considerando fatores como raça, classe e gênero, e as respectivas influências sobre essa decisão. O cuidado durante e após a cesariana também foi um tema central, com discussões sobre o papel dos hospitais e cuidadores, como doulas e parceiros, no apoio às mulheres no período pós-parto.
As experiências traumáticas e a violência obstétrica associadas às cesarianas foram amplamente discutidas, com foco no tecnicismo excessivo do parto, visto como uma forma de violência estrutural contra as mulheres.
O evento ofereceu uma oportunidade de reflexão interdisciplinar ao reunir conhecimentos das ciências sociais e médicas para debater as implicações globais do parto cirúrgico, além de promover um importante diálogo sobre a medicalização excessiva do nascimento e seus efeitos na saúde das mulheres e dos bebês.