
Promover um espaço de reflexão crítica sobre os rumos da saúde pública brasileira diante dos desafios da era digital. Essa foi a proposta do seminário “Saúde Digital e Direitos Humanos: Desafios e Perspectivas”, realizado no dia 18 de novembro, no auditório do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA. O encontro reuniu estudantes, pesquisadores, gestores e profissionais da saúde para discutir as implicações sociais, políticas e éticas do uso intensivo de dados e da inteligência artificial no campo da saúde.
O evento foi uma iniciativa do Programa Integrado de Pesquisa e Cooperação Técnica em Economia, Tecnologia e Inovação em Saúde (PECS-ISC/UFBA), em parceria com o projeto “Implantação e Funcionamento da Saúde Digital e Telessaúde”.
Ao longo da programação, especialistas destacaram a importância de uma saúde digital orientada por princípios éticos, pela defesa dos direitos humanos e pela valorização do cuidado, alertando para os riscos de aprofundamento das desigualdades e para a necessidade de uma formação crítica de profissionais e usuários do SUS.
Na mesa de abertura, a professora Samilly Miranda (PECS-ISC/UFBA) ressaltou a relevância do seminário diante das transformações tecnológicas que atravessam a saúde pública, chamando atenção para a necessidade de articular inovação, ética e direitos humanos nas políticas e práticas de saúde. “Como garantir que o avanço das tecnologias ocorra em harmonia com os valores éticos e com a proteção dos direitos humanos?”, questionou, levando os participantes à reflexão.
Para a diretora do Instituto de Saúde Coletiva, professora Joilda Nery, o seminário se alinhou ao percurso que o ISC vem trilhando no campo da saúde digital. “O nosso instituto tem incorporado no nosso projeto ético político esse compromisso com a inovação socialmente responsável, com a democratização do processo de decisão em relação à utilização das tecnologias sociais e o desenvolvimento delas no campo da saúde”, disse.
O reitor da UFBA, professor Paulo Miguez, avaliou a importância do seminário no contexto atual da saúde pública, articulando a defesa dos direitos humanos com os desafios impostos pelas transformações tecnológicas. “O seminário traz um desafio duplo: fazer com que a saúde seja um direito respeitado num país em que os direitos humanos, apesar de estarem constitucionalizados, ainda não são efetivamente respeitados no dia a dia, e pensar essa questão numa perspectiva contemporânea, em que a dimensão tecnológica se anuncia fortemente”, destacou.
Reflexões críticas sobre saúde digital

Com o tema “Saúde Digital: em busca de uma teoria crítica e uma prática emancipadora”, o painel da manhã aprofundou debates teóricos sobre os sentidos, limites e implicações da saúde digital no contexto contemporâneo. A mesa reuniu os pesquisadores Luis Eugênio de Souza (ISC/UFBA), Viviane Cândido (UNIFESP/GT Filosofia da Saúde ANPOF) e Naomar de Almeida Filho (UFBA/SEIDIGI-MS), sob mediação de André Stangl (ISC/UFBA).
Em sua apresentação, Luis Eugênio de Souza abordou a incorporação das tecnologias digitais no campo da saúde, problematizando seus impactos sobre o cuidado, a soberania nacional e o projeto democrático. “A tecnologia pode sim ser democratizada, isto é, voltada ou moldada por valores públicos e por processos participativos e não apenas por interesses econômicos ou tecnocráticos”.
Viviane Cândido analisou a dimensão ética e existencial da saúde digital, chamando atenção para os efeitos do distanciamento entre profissionais e usuários e para o risco de aprofundamento das desigualdades, especialmente entre pessoas idosas. “Ao invés de incluir, nós vamos colocar mais coisas, aumentar o bojo daqueles que são excluídos naturalmente”.
Naomar de Almeida Filho destacou a importância de uma compreensão crítica sobre o uso das tecnologias na saúde, especialmente no que diz respeito à formação de profissionais e usuários do SUS, alertando para o risco de uma abordagem superficial da transformação digital. “Por exemplo, todo mundo fala em letramento digital, mas ensinar pessoas a apertar os botões certos num dispositivo, tipo um smartphone, não é. Os usuários do sistema de saúde precisam entender o mecanismo, o processo, a historicidade, a contextualização e o impacto da tecnologia que está sendo utilizada”, alertou.
Entre dados e humanidade

À tarde, o painel “Direitos humanos no contexto de dataficação da vida” reuniu os pesquisadores Paola Cantarini (USP), Luiz Vianna (ISC-UFBA/ObMed-Fiocruz) e Edgar Lyra (PUC-Rio), sob mediação de Erika Aragão (ISC-UFBA), para discutir como a intensificação das tecnologias e a coleta massiva de dados impactam os direitos humanos e as relações sociais na contemporaneidade.
Luiz Vianna alertou para o risco de se reduzir a ideia de humanidade apenas ao avanço tecnológico e à produtividade, defendendo que ser humano envolve dimensões éticas e relações sociais que não podem ser ignoradas nas discussões sobre inovação e direitos. “O que nos caracteriza humanos não é nenhuma qualidade objetiva, natural ou material; é um valor social, relacional, que nós escolhemos. Nós nos definimos humanos.”
Edgar Lyra também refletiu sobre o quanto as tecnologias digitais deixaram de ser apenas ferramentas pontuais para se tornarem parte do ambiente que estrutura a vida cotidiana, influenciando a forma como as pessoas se relacionam, percebem o mundo e organizam suas experiências. “Às vezes tenho a impressão de que as pessoas estão falando cada vez mais rápido, e que o discurso está sofrendo com essa nova economia dos algoritmos. Isso tudo precisa ser pensado, porque essas tecnologias não apenas nos servem, elas nos transformam.”
Para, Paola Cantarini, a governança das tecnologias não pode se limitar a respostas técnicas ou normativas, mas deve considerar seus impactos sobre a democracia, a educação e a própria experiência humana. “A tarefa filosófica de nosso tempo talvez seja reaprender a perder tempo, reintroduzir demora, silêncio e mistério na civilização do cálculo. Entre o cálculo e o porvir, resta-nos a tarefa mais difícil e mais bela: continuar humanos”, concluiu.
Para assistir às discussões na íntegra, acesse o vídeo abaixo:






