De janeiro a agosto de 2021, cerca de 80% da população indígena elegível à vacinação já estava imunizada com as duas doses contra a covid-19 na Bahia. No mesmo período, foram registrados 2.776 casos da doença entre os povos indígenas em todo o estado. Apesar dos índices considerados satisfatórios, a cobertura vacinal aconteceu de forma desigual entre os municípios baianos. É o que apontam os dados preliminares de um estudo liderado pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e recentemente premiado em eventos de referência na área da saúde.
Para chegar aos resultados, a pesquisa coletou dados da Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) no intervalo compreendido entre os dias 17 de janeiro e 30 de agosto de 2021. Segundo o levantamento, 15% dos municípios baianos (65 de um total de 417) conseguiram vacinar indígenas no período analisado. “Alguns municípios vacinaram cerca de 44%, ou seja, menos da metade da população indígena elegível. Essas diferenças nas coberturas mostram que algumas localidades enfrentam mais dificuldades do que outras no atendimento à saúde da população indígena e, portanto, precisam de mais atenção das autoridades”, destaca o pesquisador Ueslei Rêgo, residente em Epidemiologia e Serviços de Saúde pelo ISC/UFBA.
Mesmo com a adesão menor em algumas localidades, outros municípios registraram índices mais elevados, garantindo um índice geral satisfatório para o estado. No total, quase 20 mil pessoas aldeadas foram vacinadas com a primeira dose no intervalo de tempo da pesquisa, o equivalente a 86% da população elegível à época. Em relação à segunda dose, a adesão foi de aproximadamente 80%. “A Bahia fez uma logística eficiente, inclusive com o uso de aviões no transporte de vacinas para os municípios, mas sabemos que dentro do estado existem muitas discrepâncias”, observa.
Principais entraves
Para o pesquisador, a falta de imunobiológicos no começo da vacinação e a difusão de informações negacionistas dificultaram o avanço da vacinação entre os indígenas no país. Em contrapartida, ele destaca a importância da mobilização liderada por organizações e movimentos sociais indígenas, indigenistas e sanitários junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para garantir o direito à vacinação dessas populações.
Em março de 2021, após forte pressão desses grupos, o ministro Luís Roberto Barroso determinou que o governo federal priorizasse também a vacinação de indígenas que morassem em cidades e territórios não homologados. Até então, apenas indígenas aldeados integravam a lista de grupos prioritários no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19.
“Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), existe atualmente um número expressivo de indígenas vivendo em cidades (favelas, comunidades) e, portanto, excluídos dos grupos prioritários definidos no início da campanha de vacinação”. Sem essa priorização, os indígenas só poderiam ser vacinados seguindo os critérios de idade e comorbidades aplicados à população em geral. “Foi uma resposta frente ao agravamento das condições de vida dos povos indígenas, vítimas de estratégias de violências anti-indígenas praticadas por atores sociais e pelo Estado brasileiro”, avalia o pesquisador.
Menção Honrosa
Intitulada “Povos indígenas e o acesso ao direito vacinal contra COVID-19: o caso da Bahia”, a pesquisa recebeu Menção Honrosa durante o “V Fórum Nacional de Diálogos e Práticas Interprofissionais em saúde – V FONDIPIS” e no “I Encontro Internacional de Educação e Prática Interprofissional em Saúde – I EIDEPIS”, realizados pela Universidade Regional do Cariri (URCA) entre os dias 01 e 04 de fevereiro. Em formato remoto, com sede física no município de Crato – CE, os encontros unificados também acolheram o V Encontro Regional Nordeste I, evento promovido pela Associação Rede Unida, entidade internacional que visa articular projetos, instituições e pessoas interessadas na construção coletiva de sistemas de saúde públicos.
O estudo tem a colaboração do pesquisador João Gabriel Modesto, bacharel em Saúde pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC), sob orientação do pesquisador Ricardo Lustosa (ISC/UFBA). A pesquisa é resultado do trabalho de conclusão apresentado por Ueslei Rêgo ao Curso de Especialização em Saúde Coletiva sob a forma de Residência em Epidemiologia e Serviços de Saúde, oferecido pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA). A especialização é estruturada a partir de uma metodologia que privilegia a integração teórico-prática, em uma perspectiva problematizadora, crítica e vivencial.
Para a vice-coordenadora do curso, professora Samilly Miranda, o estudo liderado pelo residente reflete a dedicação e o compromisso não apenas com o curso, mas com uma formação voltada para o Sistema Único de Saúde. “O trabalho aponta para uma temática altamente relevante, na medida que, ao investigar a cobertura vacinal para a Covid-19 de indígenas na Bahia, os autores disponibilizam informações que podem auxiliar no planejamento de ações de vacinação deste grupo e, portanto, contribuir para a redução da morbimortalidade da doença”, observa a professora.
Para Ueslei Rêgo, o prêmio revela a importância de um olhar mais atento às populações historicamente esquecidas pelo poder público. Ele também destaca a escassez de estudos na literatura científica dedicados à saúde dos indígenas e chama atenção para o agravamento das desigualdades no curso da pandemia. “Essas populações foram bem mais afetadas do que as demais durante a pandemia de Covid-19. Com esses resultados, queremos sensibilizar as autoridades para que possam promover políticas mais efetivas e, consequentemente, reduzir as desigualdades”, avalia.
A pesquisa está em fase de submissão à publicação em periódicos científicos da área. Na próxima etapa do estudo, a equipe pretende ir a campo para investigar de perto a cobertura vacinal em comunidades indígenas baianas. “A pesquisa parte de dados secundários, oferecidos pelas plataformas de órgãos oficiais, mas precisamos identificar o que contribuiu contra ou a favor da vacinação e, principalmente, saber qual a visão dessas populações indígenas sobre a própria saúde”, conclui.