[:pb]Os números relativos à Covid-19 no Brasil impressionam: 10,6 milhões de casos confirmados e mais de 257 mil óbitos desde o início da pandemia, segundo balanço do consórcio de veículos de imprensa divulgado no dia 2 de março. Na contramão disso, os dados de vacinação seguem um ritmo de crescimento desproporcional. Até a mesma data, o Brasil vacinou pouco mais de 3,3% da população com a primeira dose. Para os especialistas que participaram das discussões promovidas pelo Congresso Virtual da UFBA 2021, os impactos da Covid-19 vão além dos dados estatísticos apresentados e lançam uma série de desafios para governos, sociedade e à própria ciência.
“Faz um ano que registramos o primeiro caso da Covid-19 em nosso país, e a estimativa é que os números sejam de cinco a sete vezes maiores que isso. É um impacto sobre a saúde, qualidade de vida e bem-estar da população”. A declaração é do epidemiologista Eduardo Mota, professor do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, durante a abertura da mesa “Desafios ao controle da pandemia da Covid-19 no Brasil. Vacinação, vigilância e participação da população?”.
A mesa contou também com a presença da cientista social Nísia Trindade, presidente Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que trouxe para o centro do debate o entendimento da pandemia como um fato social a ser investigado. “É impossível olhar a pandemia só do ponto de vista sanitário e do ponto de vista científico, porque ela atinge de uma forma indistinta todas as dimensões da vida social”.
Segundo Trindade, o enfrentamento tem estimulado não só a reprodução de desigualdade já conhecidas, mas também a produção de novas discrepâncias. “A vacinação e a vacina devem ser vistas como direito de cidadania, como uma construção coletiva. Uma vigilância sem participação social significa o reforço a formas autoritárias de lidar com a pandemia”, acrescentou.
Para o professor Pedro Hallal, epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o Brasil vem acumulando uma série de fracassos no curso da pandemia: não investiu nas testagens em larga escala para identificar infectados de forma mais precoce, deu pouca importância ao rastreamento de contato (acompanhamento das pessoas próximas aos infectados), e não adotou medidas de distanciamento social mais amplas. “Três de cada quatro mortes que aconteceram por Covid-19 no Brasil não teriam acontecido se a gente tivesse agido como a média dos outros países”, disse.
Ao contrário disso, destaca Hallal, o país investiu em um conjunto de remédios sem eficácia comprovada e ficou para trás naquilo que sabia fazer de melhor: a vacinação. “A gente tem capacidade de melhorar, e essa deve ser a nossa prioridade”, concluiu.
A corrida pela vacina
Atualmente, 76 vacinas estão na fase de ensaios clínicos no mundo, sendo 10 aprovadas para uso em diferentes países. São imunizantes que empregam todos os tipos de tecnologias, das mais antigas, produzidas a partir de vírus inativados, às mais modernas, à base de RNA mensageiro (mRNA). A corrida global por uma vacina contra o novo coronavírus e os resultados satisfatórios em tempo recorde colocam em evidência o protagonismo da ciência no enfrentamento da Covid-19.
“Nunca se viu a comunidade científica tão envolvida, inclusive indústrias privadas, até então concorrentes, uniram-se nesse processo. É o avanço da ciência mostrando e tentando dar uma resposta à evolução de uma pandemia tão avassaladora”, destaca a pesquisadora Tatiana Noronha, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela foi uma das participantes da mesa “Ciência a serviço da população: o processo de desenvolvimento de medicamentos e vacinas”, que reuniu pesquisadores e cientistas de diversas áreas.
Durante a discussão, o infectologista Roberto Medronho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explicou as fases de elaboração das vacinas, elucidando questões éticas envolvidas na elaboração dos imunizantes, e alertou para os conflitos de interesses dos grandes laboratórios. “Nós, enquanto comunidades científicas, temos que estar atentos para não ficarmos à mercê das grandes farmacêuticas. Por isso, precisamos valorizar cada vez mais a nossa ciência, tecnologia e inovação”, pontuou.
O debate foi coordenado pelo professor Antônio Cláudio Nóbrega, reitor da Universidade Federal Fluminense (UFF), que também falou sobre a importância de valorizar a ciência em um cenário de forte negacionismo. “O objetivo dessa mesa foi traduzir e mostrar como a ciência se desenvolve, para que possamos reforçar o real sentido da ciência e do processo civilizatório que nos trouxe até aqui”, disse.
Para o sanitarista e pesquisador José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde, um dos principais problemas da indústria farmacêutica nacional ainda é a dependência tecnológica em relação aos países desenvolvidos. Segundo ele, essa dependência tem forte relação com a Lei da Propriedade Industrial e a ausência de um projeto mais amplo. “Falta um projeto nacional que veja a questão da saúde num contexto de desenvolvimento da nação e que estimule a construção de uma capacidade industrial, científica e tecnológica em medicamentos, vacinas e tecnologias em saúde”, completou.
Os tropeços da vacinação
Depois de comemorar a aprovação para uso emergencial de duas vacinas, a CoronaVac, produzida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, e o imunizante da Universidade de Oxford e da farmacêutica AstraZeneca, produzido no país pela Fiocruz, o desafio do Brasil agora é conseguir acelerar o ritmo da vacinação e frear o avanço da pandemia. Mas o que há de errado nas estratégias adotadas e quais as saídas para superar o problema?
Essas foram algumas das questões trazidas pela mesa “Vacinas contra Covid -19: características dos produtos, estratégias e efeitos da vacinação no Brasil”. O debate virtual teve como convidados o imunologista e pesquisador Manoel Barral (UFBA/Fiocruz) e a epidemiologista Carla Domingues, que atuou como coordenadora do Programa Nacional de Imunizações por 8 anos (2011 a 2019). A sessão foi mediada pelo professor e pesquisador Maurício Barreto (ISC/UFBA), coordenador da Rede CoVida – Ciência, Informação e Solidariedade.
A mesa foi uma oportunidade para a plateia virtual compreender diversas questões que atravessam a produção e uso das vacinas, desde a composição dos diferentes tipos de imunizantes aos impactos de possíveis alterações dos esquemas vacinais. Para Manoel Barral, um dos pontos que precisam ser mais bem esclarecidas à população é o índice de eficácia dos imunizantes, que vem sendo questionado de forma equivocada. “A mensagem que precisamos passar é: use a vacina que tiver disponível porque todas elas vão proteger contra a forma grave da doença e isso é extremamente importante no momento”, enfatizou.
Durante o debate, a epidemiologista Carla Domingues criticou a falta de organização para a campanha de vacinação contra a Covid-19 no Brasil. Para ela, as falhas de articulação podem ser percebidas tanto em relação ao processo de compra dos imunizantes, como também na aquisição de seringas em número insuficiente, além da ausência de cadastramento prévio da população que seria prioritariamente vacinada. “Organizar uma campanha significa planejar e fazer todo o processo de vacinação”, disse.
Domingues também comentou sobre a falta de estratégias de logística mais eficientes para distribuição, armazenamento e transporte das vacinas, que deve impactar até mesmo o processo de aplicação da segunda dose, já que o número de imunizantes comprados segue muito baixo. “Todos os municípios estão vacinando ao mesmo tempo e o desabastecimento pode acontecer de forma muito mais rápida, dificultando, inclusive, o chamamento da população e gerando desmotivação no processo de vacinação”, frisou.
Outras discussões sobre as vacinas contra a Covid-19 podem ser acompanhadas através das seguintes mesas: “A vacina transdisciplinar: vírus, verdade e ciência”; “Uso emergencial e farmacovigilância de medicamentos e vacinas na Covid-19”; “Vacina: quem tem direito?”; “Tecnologias e inovações em saúde e vacinas anticovid-19”.
Trabalhadores da saúde: do medo à exaustão
O primeiro caso da Covid-19 foi registrado na Bahia em 6 de março de 2020. Um mês após a primeira notificação, o número subiu para 437 casos confirmados e 10 mortes em todo o estado. Com 13 anos de atuação na área de emergência e UTI, a enfermeira Débora Guimarães viu o medo e a ansiedade se instalarem na rotina de trabalho de uma maneira inesperada naquele primeiro momento da pandemia. “Nós fomos surpreendidos com um vírus altamente agressivo, sem saber como se comportaria e como repercutiria no sistema imunológico das pessoas”, revelou.
A experiência foi compartilhada durante a apresentação da mesa “O trabalho em saúde no contexto da pandemia: múltiplos olhares sobre o cuidado”, que contou com a participação de profissionais que trabalham em diferentes setores do Instituto Couto Maia, unidade de saúde de referência para tratamento de doenças infectocontagiosas no Brasil, e que fica em Salvador.
“Nós convidamos uma equipe de profissionais para que pudéssemos discutir esses múltiplos olhares dos trabalhadores de saúde, saber o que eles têm enfrentado e quais são as lições aprendidas”, destacou a professora Isabela Cardoso (ISC/UFBA), coordenadora do debate.
Entre os principais pontos discutidos, o grupo abordou a importância do trabalho multiprofissional no acompanhamento dos pacientes, as medidas de segurança adotadas e chamou atenção para o nível de esgotamento das equipes após o primeiro ano intenso de trabalho. “Nós precisamos seguir em frente, mas não podemos negar esse cansaço, essa exaustão”, desabafou o médico Daniel Barreto.
O debate contou ainda com a presença do técnico de enfermagem Joelson Machado, a psicóloga Ana Carla Andrade, a assistente social Cassiana Souza e o fisioterapeuta Marcos Vinicius das Neves, que compartilharam com a plateia virtual as vivências de cada área no enfrentamento da pandemia.
Outras mesas do Congresso também discutiram a atuação e os desafios dos trabalhadores de saúde no contexto da Covid-19. Veja os principais temas: “A formação dos profissionais e o trabalho na saúde: desafios e apostas contemporâneas”; Trabalhadores da saúde na pandemia: O que tem sido feito para protegê-los?; “Educação médica no Brasil: desafios pedagógicos e político-institucionais para formação em competência tecnológica e qualidade-equidade no cuidado em saúde”.
O SUS após a pandemia
Em meio ao momento atual de crise sanitária, a estrutura robusta de acolhimento do Sistema Único de Saúde (SUS) tem representado a principal arma do Brasil para enfrentar os desafios impostos pela pandemia. Mas até que ponto os cortes de investimento, registrados ao longo dos últimos anos, impactaram nesse nível de resposta? E quais os legados a Covid-19 deixará para o nosso sistema em um contexto que também envolve crises de caráter econômico e político?
Essas foram algumas das questões que nortearam o debate “Cenários do SUS pós pandemia”, que reuniu pesquisadores de referência na área da Saúde Coletiva no Congresso Virtual UFBA 2021. A mesa contou com a participação dos professores Jairnilson Paim (ISC/UFBA), Naomar de Almeida Filho (ISC/UFBA) e Regina Fernandes Flauzino (UFF), com mediação da professora Isabela Cardoso (ISC/UFBA).
Durante a apresentação, o professor Naomar de Almeida Filho destacou as diversas estratégias de enfrentamento adotadas pelos países e os principais erros e acertos dessas escolhas para os rumos da pandemia. “A atuação brasileira foi muito pior do que o cenário mais pessimista que desenhamos”, avaliou. Para ele, apesar das disponibilidades de tecnologias, diversas ameaças, como o processo de privatização do SUS, podem deixar o Brasil para trás na superação da pandemia no mundo. “A disponibilidade de tecnologias não necessariamente implica em equidade e, muitas vezes, pode produzir um efeito de aprofundamento das nossas iniquidades”, disse.
A professora Regina Flauzino chamou a atenção para alguns problemas que estão se agravando no curso da pandemia e que devem gerar maior demanda da sociedade pelo SUS, como o aumento de casos relacionados à saúde mental, doenças crônicas, o cuidado com os idosos, além do aumento da violência doméstica. “A Atenção Primária à Saúde é organizada a partir das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Estratégias de Saúde da família (ESF), que oferecem os serviços próximos às comunidades. São as UBS e suas equipes que recebem as pessoas acometidas pelos problemas de saúde decorrentes do desemprego e da falta de renda”, avaliou.
No debate, o professor Jairnilson Paim criticou também o orçamento previsto para SUS em 2021, na ordem de R$ 123,8 bilhões, que representa um recuo de R$ 40 bilhões em relação ao montante investido no ano passado. Para ele, o subfinanciamento representa uma das principais ameaças ao SUS e o cenário vem se agravando cada vez mais com o processo de financeirização do sistema. “Esse capital financeiro vai invadindo cada espaço e definindo todas as formas de operação não apenas do SUS, mas de todo o chamado setor saúde no Brasil”, criticou. Segundo Paim, é preciso discutir a questão de forma ampla e pensar o SUS que vamos ter pós pandemia. “É por esse SUS que nós estamos lutando”, disse.
Outros debates no Congresso Virtual 2021 discutiram o papel do SUS no enfrentamento da pandemia, desde a oferta de serviços à questão do financiamento do sistema. Entre os principais temas, destaque para as mesas: “Atenção hospitalar no contexto da pandemia: lições não aprendidas com a primeira onda”; “Atenção Primária à Saúde e regionalização do SUS: desafios para coordenação do cuidado”; “Educação permanente em saúde: ações desenvolvidas pelos estados em tempos de pandemia”; “Fundo público, previdência social e saúde e desenvolvimento”.
Ciência nos tempos de crise
“A pandemia é uma oportunidade para que nós cientistas possamos nos reconectar com a sociedade”. A declaração é de Márcia Barbosa, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) durante o debate promovido pela mesa “Ciência nos tempos de crise”, que também contou com a participação da Débora Menezes, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e da professora Suani Rubim de Pinho (UFBA).
A mesa revisitou a atuação de importantes cientistas e as relações estabelecidas com governos e sociedade ao longo do tempo, destacando os processos de comunicação estabelecidos e as relações de poder envolvidas em cada época. Na apresentação, a professora Márcia Barbosa também rebateu mitos que buscam deslegitimar a ciência e reforçou a necessidade de se investir mais na educação superior e na formação de novos pesquisadores. “O motor do crescimento econômico do país é a ciência”, disse.
No debate, a professora Débora Menezes destacou o papel da extensão acadêmica e da divulgação científica, que passaram a ser mais valorizadas pelos pesquisadores e cientistas durante a pandemia. No entanto, para ela, é preciso sair do discurso. “Não é o público que tem que acordar interessado em ciência; os cientistas é que tem que convencê-lo da sua importância”, frisou.
Luz, câmera, ciência!
Para debater o impacto da Covid-19 sobre a ciência e a opinião pública, a partir de uma ótica internacional, o Congresso Virtual 2021 recebeu o historiador e sociólogo Yves Gingras, professor da Universidade do Quebec em Montreal (UQAM), Canadá. Ele foi um dos convidados da mesa “Crise da pandemia e a formação de consenso na comunidade científica”, que teve a participação dos professores Jamacy Costa Souza (ENUFBA), Lígia Vieira Da Silva (ISC/UFBA) e Olival Freire Júnior (Instituto de Física/UFBA).
“Antes da pandemia, a mídia costumava apresentar os resultados científicos quando já estavam estabelecidos, publicados e chancelados por uma dada comunidade científica”, disse Gingras na palestra. Segundo o professor canadense, além de dar maior visibilidade à ciência, a presença mais massiva dos pesquisadores e cientistas na mídia tem revelado ao público os “bastidores” de um conhecimento científico ainda não maturado e, portanto, com todas as incertezas e questionamentos que fazem parte do fazer ciência.
Gingras também discutiu sobre a ponte que a imprensa representa entre cientistas e sociedade, inclusive na hora de decidir quais fontes científicas terão voz sobre determinados temas. “Isso reforça não só a importância, mas a responsabilidade dos jornalistas e dos divulgadores da ciência”, disse.
Entre as principais lições da pandemia, o professor alertou para a necessidade de apoio a um número maior de pesquisas em campos distintos cada vez mais abrangentes. “Os governos devem ter a responsabilidade de apoiar uma ampla capacitação científica porque nós nunca sabemos quais serão os problemas importantes no futuro imediato e quais serão as melhores estratégias científicas para lidar com esses obstáculos”, concluiu.[:]