Os desafios contemporâneos para pensar os processos de trabalho, a necessidade de transdisciplinaridade para pensar a relação gênero, saúde e trabalho e as tensões do trabalho de cuidado foram algumas das questões abordadas durante o 1º Colóquio “Trabalho e Educação na Saúde”, realizado nos dias 3 e 4 de novembro, no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA). Com o tema “O processo de trabalho em saúde: diálogos possíveis entre as Ciências Sociais e a Saúde Coletiva”, a programação contou com apresentações de Isabela Cardoso, coordenadora do eixo temático “Trabalho & Educação Permanente no SUS”, Nadya Araújo Guimarães (USP e CEM/Cebrap), Lilia Blima Schraiber (USP), Estela Aquino (ISC), Leny Trad (ISC) e Helena Hirata (USP).
A primeira mesa-redonda, coordenada por Jairnilson Paim, coordenador do projeto Análise de Políticas de Saúde no Brasil (2013-2017), teve como tema “O processo de trabalho como categoria analítica”. Nadya Guimarães, que apresentou o tema “O processo de trabalho: críticas, desafios e perspectivas teóricas”, abordou reflexões sobre o processo de trabalho a partir da tríade “objeto-meio-relações sociais” e pontuou que existem desafios contemporâneos que esse esquema não dá conta de responder.
A pesquisadora destacou que as novas configurações dos meios de trabalho incluem aspectos como a externalização da produção, o trabalho virtual sem hora nem local e o home office. “Parece que borramos os limites entre local de trabalho e residência. O que é o local de trabalho quando não há limites entre o lugar de trabalho e o lugar de vida?”.
Os dois últimos, para a pesquisadora, são o melhor exemplo do desafio do estudo do processo de trabalho na contemporaneidade. “Quando você sobrepõe essas duas atividades, o trabalho e a vida fora do trabalho no mesmo lugar, você está sobrepondo papeis. […] Há uma sobreposição física dos dois espaços que mistura papeis de gênero e mostra perda de autonomia. O trabalho invade de maneira completa o seu espaço de vida e de sociabilidade privados. É muito interessante quando você começa a pensar que isso desafia aquilo que a gente tinha chamado a atenção, que era preciso atentar as teorias para a vida extra trabalho, elas só estavam voltadas para a vida no trabalho. Então olhamos a vida extra trabalho. Só que agora a vida no trabalho invadiu a vida extra trabalho. É um desafio a nós que desafiávamos as teorias”.
Sobre as relações sociais, Nadya destacou o papel do consumidor como terceiro elemento nas relações de serviço, mas criticou seu uso para justificar processos de discriminação. Apresentou como exemplo empresas e contratantes que selecionam ou não seus contratados por questões que envolvem discriminações de raça/etnia, orientação sexual, gênero e corpos (pessoas gordas ou com deficiência, por exemplo), com o argumento de que os consumidores rejeitam pessoas com esta ou aquela aparência; o que difere do ambiente de trabalho em call center, por exemplo, onde essas mesmas pessoas são aceitas por serem somente uma voz para os consumidores.
Com um “um convite a uma reflexão incompleta”, Lilia Blima Schraiber apresentou “O processo de trabalho em saúde: incorporação das ciências sociais à produção teórica brasileira”. Lilia abordou as ações assistenciais em saúde e seus agentes e falou sobre o trabalho médico como referência para os demais trabalhos em saúde. “Vocês podem me perguntar, mas Lília, por que colocar o trabalho médico como central? Eu respondo que eu não pus, foi a história que pôs”, explicou. Para apoiar a afirmação, a pesquisadora traçou um histórico com alguns ciclos do trabalho médico que demonstraram que a produção dos cuidados era centralizada nesse profissional, que tinha autonomia e estabelecia vínculos de confiança. A pesquisadora destacou que os meios de trabalho eram cientificamente orientados, tecnicamente homogêneos e de menor complexidade.
Trandisciplinaridade é essencial
Na mesa-redonda, “O enfoque de gênero na abordagem do trabalho em saúde”, coordenada por Lilian Marinho, foi destacada a necessidade da transdisciplinaridade para os estudos de gênero e trabalho. Helena Hirata, na apresentação “Gênero, trabalho e saúde: controvérsias teóricas”, mostrou resultados de pesquisas empíricas sobre trabalho e gênero que apontam a relação entre precariedade e o trabalho feminino muitas vezes marcado pela subcontratação com perda de direitos e ocorrência de lesões. A pesquisadora citou como exemplos o grande número de casos de LER – lesões por esforços repetitivos em trabalhadoras, casos de lombalgia e insônia causada por estresse pela relação com a doença e a morte dos idosos em cuidadoras e destacou que trabalhadores terceirizados precarizados não tem ideia dos riscos aos quais estão expostos no trabalho.
“[A precarização] É um fenômeno que se intensifica em todo o mundo, tanto no Brasil quanto na França, no Japão, e em outros países, inclusive os capitalistas avançados. Há políticas governamentais que devem ser implementadas para que diminua o número de trabalhadores precários e aumente o de empregos formais. A única coisa é que muitas vezes esses empregos formais têm características do trabalho informal que é precário, isto é, sem direitos sociais, com salários muito baixos, então o fato de ser formal não significa necessariamente que não seja precário. […] Há necessidade dos movimentos sociais reivindicarem uma maior estabilidade de emprego, menos precariedade. Não só o governo, mas também os movimentos sociais, sindicalistas, feministas, devem lutar para que esses empregos informais diminuam em todo o mundo”.
Para a socióloga, no Brasil faltam instrumentos estatísticos para medir o impacto dos processos de trabalho em homens e mulheres. “A organização do trabalho tem consequências importantes sobre a saúde e a visão dicotômica entre os antigos e os atuais processos de trabalho não dá conta da análise. […] Há desigualdades sociais e sexuais na saúde da mesma forma que há no trabalho e as pesquisas científicas costumam generalizar mulheres e homens, o homem é o sexo de base”, criticou.
A necessidade de mais presença das feministas no estudo da relação entre gênero, trabalho e saúde foi citada por Estela Aquino na apresentação “Contribuições do Programa Integrado em Gênero e Saúde, ao estudo da relação trabalho, gênero e saúde”. Para a pesquisadora, “A invisibilidade da produção acadêmica feminista permanece. Buscar alternativas do ponto de vista teórico e recriar instrumentos ainda são desafios. […] É importante o diálogo transdisciplinar para vencer a ciência androcêntrica que invisibiliza e obscurece”.
Estela Aquino apresentou um panorama dos estudos feministas: da invisibilidade das atividades laborais das mulheres e desconhecimento dos efeitos do trabalho sobre sua saúde nos anos 70 à ampliação das investigações e uso do gênero como uma categoria analítica para pensar práticas, relações sociais e de poder nos anos 90. Destacou também resultados de pesquisas que apontam o conflito trabalho família com anulação de fronteiras – mulheres se preocupavam com a casa no trabalho e com o trabalho em casa –, a naturalização da dupla jornada de trabalho da mulher e os impactos do trabalho noturno em mulheres geralmente escolhido para conciliar a atividade com outro trabalho ou cuidar das crianças.
No segundo dia do colóquio, a mesa-redonda “As tensões entre a produção do cuidado e as suas condições socio-institucionais no Brasil”, coordenada por Leny Trad, contou com novas apresentações de Helena Hirata, que tratou sobre a temática “O cuidado no Brasil: uma perspectiva comparativa internacional” e Nadya Araújo Guimarães, que discutiu “A diversidade do trabalho de cuidado: tensões nas fronteiras profissionais, reconhecimento e identidades”. No encerramento, Isabela Cardoso falou sobre “Trabalho em saúde no Brasil: tendências e desafios”. Para a pesquisadora, também diretora do ISC-UFBA, o colóquio superou as expectativas. “O diálogo com as pesquisadoras convidadas abriu um leque de oportunidades de pesquisa colaborativa. Foi possível identificar os interesses dos nossos grupos de pesquisa e as convergências em relação aos objetos de estudo com vistas a estabelecer uma cooperação interinstitucional envolvendo docentes, pesquisadores, mestrandos e doutorandos do Instituto de Saúde Coletiva”, concluiu.