De 2006 a 2019, o Brasil registrou 778.608 mortes relacionadas à insuficiência renal, condição na qual os rins perdem a capacidade de filtrar o sangue e eliminar substâncias que podem ser tóxicas para o organismo. Segundo um estudo liderado pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Bahia (ISC/UFBA), que analisou a relação entre esses óbitos e os postos de trabalho ocupados, o número de mortes por insuficiência renal quase triplicou entre os trabalhadores da agropecuária no intervalo de 14 anos.
Para chegar aos resultados, os pesquisadores utilizaram dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), a partir dos registros que apontam a insuficiência renal como causa básica ou associada na declaração de óbito. No período investigado, aproximadamente 50% das mortes tiveram como causa a insuficiência renal do tipo crônica, definida como uma lesão lenta, progressiva e irreversível dos rins; 45% foram mortes decorrentes da insuficiência renal aguda, quando há perda da função renal rápida e de maneira súbita. Outros 5% dos óbitos foram declarados como insuficiência renal não especificada nos registros apurados.
De acordo com o levantamento, 53.278 trabalhadores da agropecuária, com idade de 18 a 69 anos, morreram em decorrência de insuficiência renal entre os anos de 2006 e 2019, o que representa 7% do total de óbitos registrados pela doença no país. Em 2006, foram contabilizadas 1.782 mortes, saltando para 7.077 casos em 2019. Para o período em questão, o crescimento dos óbitos totais por insuficiência renal no grupo foi de quase 300%, com média de 8% a cada ano, sendo 25% de aumento somente de 2018 para 2019.
“São trabalhadores com intensa exposição ocupacional a agentes físicos (calor/frio, umidade, radiação solar), biológicos (animais peçonhentos, bactérias, fungos e vírus) e químicos (agrotóxicos), além de riscos ergonômicos e de acidentes de trabalho. Portanto, é possível que a alta mortalidade por insuficiência renal nesse grupo de trabalhadores seja reflexo de suas vulnerabilidades socioeconômicas, além das múltiplas exposições”, explica Cleber Cremonese, professor do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA.
A pressão alta (hipertensão) e diabetes mellitus associada a obesidade são os principais fatores de risco para a insuficiência renal crônica, enquanto a desidratação e a lesão ou obstrução renal aparecem mais associados a insuficiência renal do tipo aguda. Outras origens que favorecem a insuficiência renal são a obstrução do fluxo de sangue, rabdomiólise (destruição das fibras musculares), doenças infecciosas ou exposição a substâncias nefrotóxicas, como medicamentos e outros agentes químicos.
O estudo também traçou os determinantes sociodemográficos para os grupos de ocupação. Os homens representaram a maioria expressiva das mortes entre os trabalhadores da agropecuária: 86,7% dos casos por insuficiência renal aguda e 78,7% dos casos de insuficiência renal crônica. Em relação à raça/cor da pele, houve uma equivalência entre brancos e pardos, enquanto a escolaridade concentrou a maior quantidade de mortes nos grupos com nenhuma ou até 3 anos de estudo.
Para a equipe de pesquisadores, o baixo nível educacional de parte desses trabalhadores pode estar associado à menor percepção dos riscos do trabalho rural, além de ser obstáculo na leitura e interpretação de rótulos de produtos tóxicos usados nas culturas, aumentando os riscos de exposição a substâncias que podem causar efeitos adversos ao próprio sistema urinário e contribuir para o desenvolvimento da insuficiência renal. O aumento da faixa etária também refletiu em mais óbitos, indicando a força do aspecto idade para a prevalência dos casos, especialmente no grupo de 60 a 69 anos. “Esses indivíduos representam um grupo de alta vulnerabilidade da insuficiência renal, pois a idade é determinante para o desenvolvimento da doença, somada a exposição ocupacional crônica e comorbidades”, alerta o professor.
Registros incompletos
Das 778.608 mortes registradas no país relacionados à insuficiência renal, entre 2006 e 2019, apenas 282.145 tiveram o campo de “ocupação” preenchido nas declarações de óbito. Destas, 75.542 eram representadas por trabalhadores do setor de produção de bens e serviços industriais, ou seja, 26,8% do total. Na vice-liderança, estão justamente os trabalhadores da agropecuária, florestais, pesca e aquicultura (19,3%), seguidos dos trabalhadores de serviços e vendedores do comércio (18,9%).
Mesmo diante do possível sub-registro e da má qualidade do preenchimento do campo “ocupação” nas declarações de óbito, os pesquisadores chamam atenção para a alta frequência de registros no setor da agropecuária, que cresceu 2,9 vezes no intervalo de 14 anos. “Esses resultados sustentam e aumentam a necessidade de investigação sobre a relação do processo de trabalho e das múltiplas exposições dos trabalhadores rurais com o potencial desenvolvimento da insuficiência renal”, destaca Cremonese.
Segundo o professor, é urgente garantir o registro de dados mais completos, tanto em relação à ocupação, como de outros campos descritivos, a exemplo da raça/cor, em documentos oficiais da área da saúde, que permitiriam maior e melhor compreensão do real tamanho do problema. “Precisamos também ampliar a discussão entre todos os atores envolvidos (trabalhadores, profissionais dos serviços, representações sociais, academia e gestores públicos) sobre as condições de trabalho dos agricultores, o intenso uso de agrotóxicos nas culturas, a exposição ocupacional e ambiental, determinantes que podem estar envolvidos no aumento dos óbitos para insuficiência renal no país”, conclui.
Mais informações sobre o estudo podem ser consultadas através do boletim epidemiológico “Mortalidade por insuficiência renal em trabalhadores da agropecuária no Brasil, 2006-2019”, elaborado pelo Centro Colaborador da Vigilância dos Agravos à Saúde do Trabalhador (CCVISAT). Os dados da pesquisa também estão disponíveis em versão audiovisual. Assista abaixo ao vídeo: