Foto oficial da USAID

Os recentes cortes no financiamento da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) podem provocar mais de 14 milhões de mortes evitáveis até 2030. Entre essas, estima-se que mais de 4,5 milhões seriam de crianças menores de cinco anos. O alerta é de um estudo internacional, liderado pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), em parceria com instituições da Espanha, dos Estados Unidos e de Moçambique, e publicado nesta segunda-feira (30) na revista científica The Lancet.

Para chegar aos resultados, os pesquisadores analisaram dados de 133 países e combinaram duas abordagens: uma avaliação retrospectiva entre os anos de 2001 e 2021, e modelos de projeção de impacto até 2030. Utilizando modelos estatísticos, o estudo levou em conta fatores como população, renda, educação e estrutura dos sistemas de saúde para estimar o efeito do financiamento da USAID na redução da mortalidade — com recortes por faixa etária e causas de morte. Na última etapa, foram aplicados modelos de microssimulação para estimar quantas mortes adicionais podem ocorrer caso os cortes sejam mantidos.

A USAID é o principal órgão de assistência internacional do governo norte-americano. Criada em 1961, no contexto da Guerra Fria, a agência promove ações em áreas como saúde, educação, segurança alimentar, desenvolvimento econômico e fortalecimento de instituições democráticas, com foco especial em nações de baixa e média renda.

91 milhões de vidas salvas

Segundo o estudo, entre 2001 e 2021, os programas apoiados pela USAID contribuíram para uma redução de 15% na mortalidade geral e de 32% nas mortes de crianças menores de cinco anos. Ao todo, os pesquisadores estimam que mais de 91 milhões de vidas foram salvas nesse período — sendo cerca de 35 milhões de crianças.

Nos países que receberam os maiores volumes de recursos, os efeitos foram ainda mais expressivos: a mortalidade por HIV/aids caiu 74%, por malária 53% e por doenças tropicais negligenciadas 51%. Houve também queda significativa nas mortes por tuberculose, deficiências nutricionais, doenças diarreicas, infecções respiratórias e complicações maternas e perinatais.

“Nossa análise mostra que o financiamento da USAID foi uma força essencial para salvar vidas e melhorar os resultados em saúde nas regiões mais vulneráveis do mundo nas últimas duas décadas”, afirma Daniella Cavalcanti, pesquisadora de pós-doutorado no Instituto de Saúde Coletiva da UFBA e primeira autora do estudo.

14 milhões de vidas agora estão em risco

As estimativas apontam que, se os cortes forem mantidos, mais de 14 milhões de mortes adicionais podem ocorrer até 2030, incluindo mais de 4,5 milhões de crianças menores de cinco anos — o que equivale a cerca de 700 mil mortes infantis extras por ano. Os impactos previstos vão além da saúde, afetando áreas essenciais como nutrição, educação, água e saneamento, e assistência humanitária.

“Nossas projeções indicam que esses cortes podem levar a um aumento acentuado de mortes evitáveis, especialmente nos países mais frágeis. Há o risco de interromper abruptamente — e até mesmo reverter — duas décadas de avanços em saúde entre populações vulneráveis. Para muitos países de baixa e média renda, o choque resultante seria comparável, em escala, a uma pandemia global ou a um grande conflito armado.”, explica Davide Rasella, professor do ISC/UFBA e coordenador do estudo.

Um efeito “dominó global”

Ainda de acordo com os pesquisadores, o corte no financiamento da USAID pode afetar não apenas os programas diretamente apoiados pela agência, mas desestabilizar todo o sistema de cooperação internacional. Como os Estados Unidos respondem por mais de 40% da ajuda humanitária global, existe o risco de que outros países e organizações sigam o mesmo caminho, reduzindo seus aportes. O resultado seria uma crise ainda mais profunda nos serviços essenciais de saúde, nutrição e saneamento em países que já dependem fortemente do apoio externo.

“Os achados deste estudo são ainda mais preocupantes diante do fato de que outros doadores internacionais — principalmente na União Europeia — também anunciaram reduções substanciais em seus orçamentos de ajuda, o que pode resultar em ainda mais mortes adicionais nos próximos anos”, acrescenta Lucas Sales, pesquisadora de pós-doutorado no ISC/UFBA e coautor do estudo.

Além do impacto direto na oferta de cuidados em saúde, os pesquisadores ressaltam que os programas financiados pela USAID têm papel decisivo em áreas como educação, segurança alimentar, acesso à água potável e fortalecimento da resiliência econômica — fatores fundamentais que influenciam os determinantes sociais da saúde. A retirada desse suporte, segundo os autores, pode comprometer o desenvolvimento e a estabilidade de longo prazo em muitos países de baixa e média renda.

O estudo é a primeira análise abrangente a medir o efeito do financiamento total da USAID — incluindo saúde, nutrição, educação, assistência humanitária e outros setores estratégicos — sobre as taxas de mortalidade nesses países ao longo das duas últimas décadas. Os pesquisadores destacam que as projeções representam o cenário mais provável com base nas evidências e decisões políticas atuais, mas alertam que os desfechos futuros dependerão da resposta de governos e instituições internacionais.

Para acessar o estudo completo, clique aqui.