O Ministério da Saúde encerrou o estado de emergência nacional em função da pandemia do coronavírus baseando-se na queda progressiva da frequência de casos e óbitos e no aumento da cobertura vacinal, citando ainda a necessidade de ampliar o atendimento no SUS ao conjunto de outras doenças “negligenciadas durante os períodos de picos da Covid” e a capacidade de resposta da vigilância epidemiológica e genômica do país. Todavia, o argumento que não se explicitou – e que terá efeitos imediatos – está na esfera administrativa da gestão da crise sanitária da Covid-19. A partir da Portaria 913/2022 poderá ocorrer redução da disponibilidade de recursos excepcionais para o controle da doença, inclusive para a compra de vacinas, para a pesquisa e para ações de prevenção. Efeitos colaterais desse encerramento serão sentidos também na eliminação da possibilidade de compras sem licitação dos insumos indispensáveis, que passarão a ser adquiridos pelos processos habituais de compras do serviço público, que costumam se completar em sessenta ou noventa dias.

Eduardo Mota*

Com a Portaria GM/MS No. 913, de 22 de abril de 2022, o Ministério da Saúde encerrou a situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) decorrente da Covid-19 (ver aqui). O ato normativo não foi muito além disso. Revogou a Portaria GM/MS No. 188 de 3 de fevereiro de 2020, do então Ministro Luiz Henrique Mandetta, que estabeleceu a ESPIN para a pandemia da Covid-19, e expressou a promessa, no artigo 2º, de que “orientará os Estados, o Distrito Federal e os Municípios sobre a continuidade das ações que compõem o Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus” (ver aqui).

A medida fez referência apropriada ao Decreto No. 7.616, de 17 de novembro de 2011, da Presidenta Dilma Rousseff, que dispôs sobre ESPIN e foi aplicado em 2020. Com efeito, a pandemia do vírus SARS-CoV-2 foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020, como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). Recentemente, em 13 de abril de 2022, o Comitê de Emergências da OMS recomendou que se mantivesse o Estado de Emergência por mais noventa dias, conforme declarou o diretor-geral Tedros Adhanom. A Portaria 913/2022 contrariou esta recomendação.

Ao anúncio sobre o encerramento da ESPIN seguiram-se várias manifestações. O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto, se pronunciou sobre a intempestividade do anúncio, assinalando que não houve diálogo com governos estaduais e municipais, com o Congresso Nacional e com autoridades de Saúde Pública para a tomada de decisão (ver aqui).

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde – CONASS e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde – CONASEMS, emitiram um ofício conjunto (No. 14/2022) ao Ministério da Saúde, em 19 de abril de 2022, tratando da possibilidade de encerrar a ESPIN para a Covid-19, solicitando que se “estabeleça prazo de 90 (noventa) dias para sua vigência e que seja acompanhada de medidas de transição pactuadas, focadas na mobilização pela vacinação e na elaboração de um plano de retomada capaz de definir indicadores e estratégias de controle com vigilância integrada das síndromes respiratórias” (ver aqui). A portaria 913/2022 ignorou os termos desse ofício e estabeleceu um prazo de apenas 30 dias, e não apresentou, até o momento, um “plano de retomada” como indicaram os referidos Conselhos de Gestores do SUS.

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO, em conjunto com diversas entidades e movimentos da sociedade civil publicou, em 18 de abril de 2022, uma Carta Aberta se posicionando contrária à medida. Na Carta se lê: “Apesar de acompanharmos com esperança a redução da taxa de disseminação do vírus, e também a diminuição de novas infecções, hospitalizações e mortes, a epidemia não acabou no nosso país”. Na mesma data, o Observatório Covid-19 da FIOCRUZ promoveu um debate sobre o tema, com a participação de pesquisadores especializados, que também indicaram a necessidade de um “plano de políticas, estratégias e ações para o curto, médio e longo prazos”, para uma passagem segura para a nova realidade que a situação epidemiológica atual requer. Em contraste, o que a Portaria 913/2022 deixa transparecer é que o objetivo a cumprir era apenas o de encerrar a Emergência de Saúde Pública.

Os argumentos para encerrar a ESPIN para a situação da Covid-19 no Brasil, conforme informou o Ministério da Saúde, basearam-se na queda progressiva da frequência de casos e óbitos e no aumento da cobertura vacinal específica. Citam-se ainda a necessidade de ampliar o atendimento no SUS ao conjunto de outras doenças “negligenciadas durante os períodos de picos da Covid” e a capacidade de resposta da vigilância epidemiológica e genômica do país (ver aqui).

Todavia, o argumento que não se explicitou e que terá efeitos imediatos, está na esfera administrativa da gestão da crise sanitária da Covid-19. A partir da Portaria 913/2022 poderá ocorrer redução da disponibilidade de recursos excepcionais para o controle da doença, inclusive para a compra de vacinas, para a pesquisa e para ações de prevenção. Efeitos colaterais do encerramento da ESPIN serão sentidos também na eliminação da possibilidade de compras sem licitação dos insumos indispensáveis, que passarão a ser adquiridos pelos processos habituais de compras do serviço público, que costumam se completar em sessenta ou noventa dias. Ao solicitar um prazo de noventa dias, os gestores da Saúde Pública nos estados e municípios estavam, certamente, preocupados também com as dificuldades com estes procedimentos administrativos.

Ademais, a vacina Coronavac, do Instituto Butantan (São Paulo), a primeira a ser administrada no Brasil, não conseguiu obter o registro definitivo na Anvisa e na condição de produto com autorização para uso emergencial deixaria de ser aplicada com o encerramento da ESPIN. O Ministério da Saúde informou que pretende utilizar esta vacina, de produção nacional, apenas para crianças e adolescentes, caso a Anvisa renove a autorização para uso emergencial (ver aqui). No mercado de vacinas contra a Covid-19, poderá ser um concorrente a menos.

Comenta-se que desde o início da pandemia da Covid-19, muitos atos normativos e até leis, nas três esferas de governo, foram vinculados à vigência da ESPIN e deverão ser revistos, modificados ou revogados, no curtíssimo tempo de trinta dias. A complicação pode ser ainda maior. Há dispositivos da Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que têm sua vigência vinculada à permanência do Estado de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, que depende da OMS; outros foram modificados pelas Leis 14.006, 14.019, 14.022 e 14.035, de 2020, entre outras, decretadas pelo Congresso Nacional e sancionadas pela Presidência da República, e outros ainda já perderam a validade antes mesmo da Portaria 913/2022, a exemplo da obrigatoriedade do uso de máscaras em locais fechados, medida já flexibilizada por estados e municípios. Resta a dúvida se haverá continuidade da divulgação à população de dados e informações sobre a pandemia. Esta era uma das competências do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública, que foi estabelecido pela Portaria 188/2020 agora revogada.

Sobre os argumentos técnicos para encerrar a ESPIN, verifica-se a queda progressiva da frequência de novos casos e óbitos pela Covid-19 nas últimas semanas. Porém, isto deveria justificar a formulação de um competente plano de gestão para a nova situação epidemiológica, com ações e prazos que possibilitassem a transição para a saída do Estado de Emergência com segurança. Até o momento nenhum plano de contingência foi divulgado pelo Ministério da Saúde. Ao se falar em vigilância epidemiológica e genômica, com informações e monitoramento, se poderia esperar que já estivéssemos preparados, entretanto, não há quem afirme que esta preparação esteja sendo providenciada ou que será anunciada proximamente.

Como a circulação do vírus SARS-CoV-2 permanece no Brasil e em outros países, é de grande relevância definir e implementar de forma inequívoca as medidas que devem ser adotadas para realizar as ações de vigilância, do que irá depender o nível de segurança que teremos de que uma nova onda da Covid-19 não nos pegará de surpresa e despreparados. Isto certamente inclui uma vigilância estruturada especificamente para a fase de transição, em que sejam assegurados os profissionais, os recursos financeiros e laboratoriais, especialmente aqueles aplicados para monitorar os agentes etiológicos das Síndromes Respiratórias Agudas Graves – SRAG, que inclui a infecção pelo vírus da Covid-19. Afinal, a desmobilização de recursos e instalações da assistência especializada irá ocorrer em decorrência do encerramento da ESPIN, que ao lado do relaxamento das medidas protetivas, já iniciada com a suspensão da obrigatoriedade do uso de máscara, poderá resultar em mais uma tragédia sanitária.

Embora se registre queda no número diário de novos casos e óbitos pela Covid-19 no Brasil, a situação ainda é nitidamente epidêmica e de mediana gravidade. Revela isto o total de 95.557 novos casos confirmados e 672 óbitos registrados na Semana Epidemiológica – SE 16 (17 a 23/04/2022), com uma tendência de descenso mais lenta do que a de semanas anteriores. A frequência de casos na SE 16 é 8,9% menor do que a registrada na semana anterior. A média móvel diária (7 dias) de novos casos confirmados, em 23/04/2022, foi de 13.654, apenas 4,6% menor que a média de sete dias atrás. A média diária de 96 óbitos é 4,3% menor que a média de óbitos de uma semana atrás.

Nas figuras abaixo, do Ministério da Saúde, é possível perceber que essas frequências ainda não alcançaram os níveis anteriores ao do início da terceira onda. Com efeito, o total de novos casos da SE 16 de 2022 é 4,3 vezes maior do que o número registrado na SE 51 (19 a 25/12/2021) de 22.283 casos. O atual número de óbitos ainda não é menor do que o registrado na SE 51/2021, de 670 mortes pela doença. Nesse sentido, é possível dizer que a terceira onda ainda não passou, simplesmente porque a situação atual ainda é de maior intensidade de transmissão do que a da segunda onda da pandemia observada no final do ano passado.

gráficomota
Fonte: https://covid.saude.gov.br/

Ademais, de acordo com o “Boletim de Avaliação de risco no cenário da Covid-19”, para a SE 16 (2022), No. 68, do Ministério da Saúde, há situações diferentes de alerta de risco de transmissão viral entre os estados, segundo dados de incidência da Covid-19 acumulados em 14 dias até 19 de abril de 2022.

O Boletim demonstra que somente cinco estados foram classificados em risco de Nível 1 – Baixo (menos de 25 casos por 100 mil habitantes): Amapá, Amazonas, Ceará, Piauí e Sergipe. Encontravam-se no Nível 2 – Moderado (25 a 150 casos por 100 mil habitantes) outros 18 estados, incluindo o DF e, mais preocupante, quatro estados foram classificados em Nível 3 (Alto) de alerta (com 151 a 499 casos por 100 mil habitantes): Goiás, com a incidência mais alta (414,7), Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Rondônia, todos com incidência acima da média nacional de 111,0 novos casos por 100 mil habitantes.

Além disso, alguns estados apresentaram, nos últimos 14 dias, coeficiente de mortalidade pela Covid-19 acima da média nacional de 0,77 por 100 mil habitantes: Alagoas (0,78), Minas Gerais, Ceará e Pará (0,83), Rio Grande do Sul (0,89), Paraná (0,93), Pernambuco (1,06), Espírito Santo e Rio Grande do Norte (1,08), Distrito Federal (1,21), Rio de Janeiro (1,31) e Goiás, com a mortalidade mais elevada (1,43).

Alguns países foram classificados, em 14 dias até 19/04/2022, em Nível 4 – Muito Alto, de alerta de risco de transmissão da Covid-19, com incidência superior a 500 casos por 100 mil habitantes: França, Alemanha, Itália, Reino Unido, Holanda, Coreia do Sul, Japão e Vietnã. A permanência de transmissão mais intensa em países com que o Brasil mantém constante fluxo de viajantes, representa risco potencial para a manutenção ou recrudescimento da pandemia e para a ocorrência de novas variantes virais.

Quanto a vacinação contra a Covid-19, embora se tenha alcançado no país cobertura vacinal da população com idade igual ou superior a cinco anos, de 88,15% com a primeira dose e de 81,2% com vacinação completa (duas doses ou dose única), a cobertura vacinal completa aumenta lentamente, não tendo sido muito maior que 1% desde o início do mês de abril desse ano. A dose de reforço, para a população com 18 anos e mais, alcança agora cobertura de 51,23%, ainda baixa. Isto significa que a população suscetível à infecção pelo vírus SARS-CoV-2 ainda é suficientemente grande para sustentar uma nova onda epidêmica. Ademais, há expressiva variação de cobertura vacinal entre os estados. Em porcentagem da população total com vacinação completa, encontram-se abaixo de 70% de cobertura vacinal contra a Covid-19 os estados: Mato Grosso, Alagoas, Maranhão, Rondônia, Amazonas, Tocantins, Acre, Roraima e o Amapá, com 51,0%, tem a menor cobertura. As diferenças regionais, caso não sejam eliminadas, representarão risco adicional do surgimento de nova onda da Covid-19 (ver aqui). Essas desigualdades não são novas e na ausência de um plano de transição que inclua a intensificação da vacinação, a Portaria 913/2022 poderá contribuir para que permaneçam.

Enfim, se são frágeis ou controversos os argumentos técnicos para encerrar abruptamente a ESPIN, se não há um plano de contingência para uma transição segura, coerente com a atual situação epidemiológica, como entidades e estudiosos indicaram, se a Portaria 913/2022 criou insegurança na aplicação da base legal e normativa da gestão da crise sanitária, se a medida pode induzir restrição de recursos, desmobilização de infraestrutura e desmotivação quanto à permanência das medidas protetivas, o que significa encerrar a ESPIN para a Covid-19?

Políticas e atos normativos governamentais devem visar o benefício da população. E em Saúde Pública isto tem relevância ainda maior. Então, que benefícios trará à população encerrar agora a Emergência de Saúde Pública conferida à pandemia da Covid-19 no Brasil, sem uma adequada preparação? Certamente, nenhum benefício direto. A pandemia não será vencida com decretos e portarias e a politização da gestão da crise só agrava a situação. Todavia, pode ser pior. Além da desmobilização de recursos e infraestrutura, a desmotivação para continuar adotando os cuidados e as medidas protetivas é uma consequência que atingirá a população, quando ainda há evidências de que a situação é de pandemia. Há transmissão viral ativa e ocorrem novos casos e mortes pela doença, que continuam a impor sacrifícios à população brasileira, e se somam diariamente ao total de 30,3 milhões de casos e 662.610 vidas perdidas registrados desde o início da pandemia.

23 de abril de 2022

*Eduardo Mota é epidemiologista, professor do Instituto de Saúde Coletiva e coordenador do Comitê de Acompanhamento do Coronavírus na UFBA

 

Documentos consultados

Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. CIEVS. Avaliação de risco no cenário da Covid-19, SE 16 (2022), Número 68. Brasília, DF. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/avaliacao-de-risco-para-covid-19/avaliacao-de-risco-no-cenario-da-covid-19-se-16-2022/view

Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico Especial: Doença pelo Coronavírus – COVID-19. Brasília, DF. 22 de abril de 2022. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/boletins-epidemiologicos/covid-19/2022/boletim-epidemiologico-no-109-boletim-coe-coronavirus.pdf/view