Um estudo inédito conduzido pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) traz dados alarmantes sobre o impacto das doenças hepáticas, condições que afetam o funcionamento do fígado, entre trabalhadores rurais brasileiros. De acordo com o levantamento, 12,74% das mortes no país ocorreram entre trabalhadores rurais, com a maior concentração no Nordeste, que respondeu por cerca de 57% dos óbitos por doenças hepáticas. Os resultados foram publicados recentemente no Cadernos de Saúde Pública, periódico científico da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz).
Os pesquisadores utilizaram dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM/DATASUS), entre os anos de 2017 e 2022, para identificar as mortes relacionadas às doenças hepáticas, além de analisar variáveis sociodemográficas, como sexo, idade, escolaridade, raça/cor e localização geográfica.
No período investigado, foram registradas 120.552 mortes por doenças hepáticas entre adultos de 18 a 69 anos. Deste total, 15.362 ocorreram entre trabalhadores rurais, representando 12,47% da amostra. A idade média de óbito entre esses trabalhadores foi de 51,3 anos, quase três anos abaixo da média de outros grupos ocupacionais.
A principal causa de morte identificada foi a doença hepática alcoólica, responsável por 53,8% dos óbitos entre os trabalhadores rurais. A maior proporção de mortes foi registrada entre homens (86,2%), pessoas pardas (61,1%), trabalhadores com até 49 anos (40,9%) e com escolaridade de até sete anos (52,4%).
Além de concentrar cerca de 57% das mortes por doenças hepáticas entre trabalhadores rurais, o Nordeste também registrou uma perda total de 382.869 anos de vida por conta dessas enfermidades. A taxa de anos potenciais de vida perdidos na região foi 1,45 vezes superior à média nacional.
As condições socioeconômicas precárias e a dificuldade de acesso a serviços de saúde são apontadas como fatores agravantes. “Esses resultados sugerem hipóteses explicativas, como possível consumo precoce e excessivo de álcool, combinado com a falta de acesso a exames preventivos ou tratamentos durante os estágios iniciais das doenças hepáticas”, explica o professor Cleber Cremonese (ISC/UFBA), um dos autores do estudo.
Os altos índices de mortalidade por doença hepática entre trabalhadores agrícolas do Nordeste brasileiro reforçam estudos anteriores que apontam condições adversas enfrentadas por essa população. Com aproximadamente 68% de seus municípios classificados como rurais, o Nordeste concentra a maior população de trabalhadores agrícolas de subsistência do Brasil.
Segundo os pesquisadores, a precariedade da infraestrutura de saúde, incluindo a escassez de unidades básicas, centros especializados e hospitais, aliada ao déficit de profissionais de saúde, especialmente em áreas remotas, contribui para o aumento da morbidade e da mortalidade precoce entre esses trabalhadores.
Perfil dos trabalhadores rurais
De acordo com dados do IBGE, a população ocupada como trabalhadores agropecuários no período analisado foi de aproximadamente 15 milhões de pessoas, majoritariamente homens (81%), identificados como brancos (45%) e pardos (44%). No aspecto econômico, 70% atuavam na agricultura de subsistência, produzindo alimentos de origem vegetal e criando animais para abate ou obtenção de derivados, como leite e lã. Para chegar aos resultados, o estudo comparou os registros de óbitos dessa população com outros grupos ocupacionais.
“Esses trabalhadores historicamente explorados ainda enfrentam desigualdades sociais significativas, rotineiramente suportam longas horas de trabalho, exposição a vários agrotóxicos e metais pesados, vulnerabilidade às condições climáticas e outros perigos. Tais condições aumentam sua suscetibilidade a acidentes de trabalho, doenças e problemas de saúde. Além disso, distâncias consideráveis dos centros de saúde padrão representam desafios para os trabalhadores agrícolas no acesso a exames preventivos ou tratamento precoce, levando a incapacidades permanentes ou aumento do risco de morte”, explica o professor.
A mortalidade entre os homens foi significativamente mais alta em todos os indicadores analisados, tanto entre trabalhadores em geral quanto no setor agrícola. Os achados estão alinhados com estudos anteriores, que apontam taxas mais elevadas de incidência e mortalidade por doenças hepáticas entre homens, independentemente da ocupação ou de outros fatores determinantes.
“Esse padrão histórico de mortes relacionadas a doenças hepáticas pode resultar de vários fatores, incluindo maiores frequências de comportamentos de risco, como consumo excessivo de álcool e tabagismo, comportamentos de busca por saúde precários e maiores exposições ambientais e ocupacionais”, aponta Cremonese.
Reflexões e caminhos para a promoção da saúde
O estudo reforça a necessidade de políticas públicas voltadas para a prevenção e o manejo de doenças hepáticas. Os resultados também chamam atenção para a urgência de intervenções que promovam a equidade em saúde e mitiguem as vulnerabilidades de uma população historicamente marcada por desigualdades.
“A concentração de óbitos no subgrupo da doença hepática alcoólica sugere a necessidade de desenvolvimento de estratégias de educação continuada voltadas para os trabalhadores agrícolas para aumentar a conscientização sobre os riscos associados ao consumo precoce, alto e frequente de álcool. No geral, este estudo contribui para a saúde ocupacional ao promover o desenvolvimento de ações direcionadas para promover a saúde e o bem-estar das populações em atividades agrícolas”, conclui o professor Cleber Cremonese.
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