Os países latino-americanos apresentam aspectos históricos e culturais singulares, regimes políticos distintos e variações quanto ao nível de desenvolvimento em cada território, mas compartilham de um mesmo desafio: enfrentar as desigualdades explicitadas pela Covid-19. “A pandemia não provocou a crise na América Latina, mas agiu sobre um corpo já doente”. A avaliação é do pesquisador Pierre Salama, professor emérito da Universidade Paris XIII – França, convidados da mesa “América Latina: a pandemia e os efeitos socioeconômicos e políticos na região”, no Congresso UFBA 75 anos.
Coordenada pela professora Anete Ivo, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a mesa também contou com a presença do sociólogo Atílio Boron, professor da Universidade de Buenos Aires, e do cientista político Emílio Taddei, pesquisador do Instituto de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos (IEALC) da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.
Para Taddei, a superação desse conjunto de crises só será possível com ações e debates articulados com os movimentos sociais e populares. “Precisamos lutar em defesa da soberania alimentar, sanitária, energética e hídrica, para tornar visíveis os estragos na saúde causados pelos modelos hegemônicos de desenvolvimento e, principalmente, pelas políticas extrativistas e neoextrativistas em todos os seus aspectos e formas”, frisou.
No debate, a professora Anete Ivo destacou ainda o processo de precarização do mercado de trabalho, marcado pela falta de garantias para a proteção social, e um crescimento expressivo da pobreza nos últimos anos, especialmente no Brasil. “Estamos diante de uma segmentação ainda mais desfavorável à população de mulheres e jovens negros”, alertou.
Outras discussões no Congresso UFBA 75 Anos também abordaram os impactos da Covid-19 em diferentes países, a exemplo das mesas “Informação em saúde: desafios e aplicações no Brasil e na Argentina”; “Resposta à pandemia de Covid-19 em países selecionados: Alemanha, Canadá, Itália, Uruguai e Cuba”; e “Resposta à pandemia de Covid-19 em países selecionados: Coreia do Sul, Portugal, Suécia e França”.
A luta pelos direitos reprodutivos
Gravidez indesejada, dificuldades de acesso a métodos contraceptivos, complicações por aborto e riscos de mortalidade materna. Como a pandemia de Covid-19 afetou o planejamento reprodutivo e o acesso das mulheres brasileiras a serviços de saúde sexual e reprodutiva? E quais os impactos das desigualdades sociais na busca por esses direitos? É o que pretende investigar a pesquisa “Pandemia de Covid-19 e práticas reprodutivas de mulheres no Brasil”, apresentado no Congresso UFBA 75 anos em mesa de mesmo título.
O estudo é desenvolvido por pesquisadoras do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA) em parceria com o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), o Instituto Rene Rachou (Fiocruz Minas) e a Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEAN/UFRJ). Participaram da mesa do congresso as pesquisadoras Ana Paula dos Reis, Cláudia Bonan, Cecilia McCallum, Uila Macedo, Andreza Rodrigues e Nanda Duarte.
A primeira etapa da pesquisa consistiu na aplicação de um questionário online com perguntas relacionadas aos efeitos da pandemia na vida e na saúde das mulheres participantes. No total, a investigação resultou em 8.384 repostas válidas, coletadas entre os meses de março e outubro de 2021. Agora, os dados seguem para a fase de análise pelas pesquisadoras. Entre as principais questões levantadas até o momento, a equipe destacou a dificuldade de muitas mulheres entrevistadas para dar seguimento ao tratamento ou investigação de doenças de mama ou de colo uterino durante a pandemia. “Há relatos, inclusive, de mulheres com problemas de infertilidade e que também têm enfrentado dificuldades para continuar o tratamento ou investigação no período da pandemia. São questões que pretendemos aprofundar na fase qualitativa dos estudos”, explicou a professora Cláudia Bonan (IFF/Fiocruz), uma das coordenadoras da pesquisa.
Durante a discussão, a professora Ana Paula Reis (ISC/UFBA), que também coordena o estudo, chamou a atenção para a ausência no Brasil de levantamentos nacionais atuais e amplos que estejam voltados à vida reprodutiva das mulheres. “A pesquisa é também uma forma de resistir e mostrar a força da ciência. Esses resultados, inclusive, podem subsidiar políticas públicas de enfrentamento a esta e outras pandemias futuras”, disse.
A saúde reprodutiva das mulheres também foi tema das mesas “Autonomia Reprodutiva De Mulheres Quilombolas” e “Políticas de saúde e autonomia reprodutiva de mulheres negras”.
Remanescentes de quilombos
A mesa “Covid19 em diferentes segmentos populacionais negros: reflexões no campo da saúde coletiva” trouxe para o centro do debate os impactos da pandemia de Covid-19 a partir do recorte racial de três grupos distintos: comunidades remanescentes de quilombo no Brasil, idosos negros no município de São Paulo e pessoas em situação de rua na cidade de Salvador.
A discussão sobre as populações quilombolas foi conduzida pela professora Diana Anunciação Santos, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que trouxe dados e fatos históricos a respeito das condições de vulnerabilidade e os diversos tipos de violência às quais estão submetidos os remanescentes de quilombos no Brasil. “Além do racismo estrutural e dos frequentes conflitos com grileiros pela posse de terra, ainda existe um racismo institucional intenso promovido pelo próprio Estado, na medida em que essa população é excluída de determinados acessos e espaços públicos”, alertou.
Segundo a professora, as desigualdades foram intensificadas com a pandemia de Covid-19, principalmente em relação ao acesso a serviços de saúde. “Muitas vezes, não há unidades básicas de saúde ou um serviço de atendimento nesses territórios e, em certa medida, as distâncias percorridas até chegar aos locais que oferecem os serviços são gigantescas, com estradas precárias e até mesmo falta de transporte público”, completou.
Idosos negros
Os impactos da pandemia sobre o recorte raça/cor também se mostram presentes na população idosa negra. É o que aponta a pesquisa “Covid-19 e idosos residentes da cidade de São Paulo: panorama da raça/cor da pele”, realizada pelo professor Roudom Ferreira Moura, da Universidade São Judas Tadeu. “O risco de adoecer, morrer e o agravamento da Covid-19 foi maior para os idosos negros, quando comparados aos brancos”, afirmou o professor.
Moura também destacou as principais questões sociais por trás do grupo investigado. Segundo ele, a maioria dos idosos pretos é representa por pessoas pobres, moradoras da periferia e que acessam a saúde exclusivamente pelo SUS, sendo, muitas vezes, vítimas de racismo no próprio serviço de saúde. Para o professor, a pandemia de Covid-19 deixa claro que lidar com a sociedade e as estruturas racistas é uma questão de vida ou morte. “Precisamos trabalhar intensamente a questão de como reverter o curso do racismo e isso exigirá ação concreta e focada, compromisso, disciplina, ambição, ousadia e dinheiro”, disse.
Pessoas em situação de rua
“Fique em casa! E quem não tem?” O dilema foi a motivação necessária para a professora Joilda Nery, vice-diretora do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA), reunir outros professores, pesquisadores e estudantes de graduação e pós-graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em prol da criação do projeto “Nós nas Ruas” na cidade de Salvador.
“Mesmo antes da pandemia, já havia uma carência de dados em relação à população em situação de rua no nosso país. Não há informações oficiais e consistentes sobre o contingente dessa população, muito menos dados epidemiológicos para trabalharmos”, pontuou Joilda Nery durante a apresentação. Uma pesquisa do Projeto Axé, feita em parceria com a UFBA e outras instituições, estima que o número de pessoas em situação de rua gira em torno de 17 mil em Salvador, com maioria de pretos e pardos.
No total, o projeto “Nós nas Ruas” conseguiu distribuir, aproximadamente, 9 mil kits de higiene, entre sabonetes, absorventes, creme dental e escovas de dentes, além de kits com máscaras de tecido, álcool gel e alimentos. O trabalho também incluiu atividades de educação em saúde voltadas à população em situação de rua, com orientações gerais sobre o novo coronavírus e abordagens sociais em locais estratégicos com o apoio do Movimento de População em Situação de Rua e do programa “Corra para o Abraço”.
Para a professora, a condição de vulnerabilidade da população de rua revela a negação das políticas publicadas destinadas a essas pessoas, semelhante ao que acontece com a população carcerária do país. “A gente já enfrenta isso para outras condições de morbimortalidades e o problema apenas se aprofundou com a pandemia. A saúde é mais um dos direitos negados a essas pessoas”, concluiu.
As desigualdades no contexto da pandemia também foram destaque nas mesas “Juventude negra soteropolitana e mercado de trabalho frente à pandemia”, “Trabalho doméstico remunerado: a linha de frente invisível no contexto da pandemia”; e “Ações de cuidados para pessoas em situação de rua na pandemia de Covid-19”.